http://ensina.rtp.pt/artigo/alexandre-oneill-poesia/#
“A Pluma Caprichosa”
(excerto do poema)
Estou onde não devia estar
Estou no grande medo instintivo de minha mãe
no medo zangado e prático de meu pai
estou em ti no teu religioso medo
nas tuas lágrimas queixas e suspiros
de mulher ajoelhada
Estou na horrível palavra «querido»
quando tu a dizes encostada a mim
enlaçando-me com os teus braços de renúncia e cobardia
com os teus olhos de súplica silenciosa
com os teus olhos de humildade canina
enlaçando-me
a mim
teu amante teu senhor e teu filho
Estou no murmúrio de desgosto da minha família
da minha família imóvel diante de mim
da minha família poderosa
da minha família de olhar duro
da minha família de olhar terno
da minha família espiando amorosamente ferozmente os meus mínimos gestos
pronta a saltar-me em cima a reduzir-me
a mais um da família
Estou onde não devia estar
Estou ainda estou no verso fugitivo
no verso enigmático palaciano e «puro»
no tapete de sonho que vai partir pró infinito
na palavra que desmaia de inanição e medo
do medo de dizer o que devia dizer e que não diz
tão doente ou mais do que eu
Estou onde não devia estar
Nos olhos do construtor que vê a fortuna crescer
na consciência do médico que esquece o doente no seio da morte
no advogado que defende os interesses mais cruéis
no professor que se diverte a torturar as crianças
no general que manda fuzilar os inocentes
no polícia que procura por todos os meios a verdade
mesmo que seja mentira
Estou onde não devia estar
Estou no compêndio de história onde a mentira se organiza
para proclamar uma «verdade»
(…)
Alexandre O´Neill